segunda-feira, 28 de julho de 2008

Maddie, a verdade da mentira

Pela primeira vez desde que começou a falar publicamente do caso do desaparecimento de Madeleine McCann, Gonçalo Amaral, o coordenador da investigação, analisa as suas próprias responsabilidades no desfecho do caso e no desenrolar de todo trabalho da Polícia Judiciária.

Das pressões e constrangimentos que pressentiam mais do que sentiam, da praticamente ilimitada autonomia na realização de diligências e até nos erros que ele próprio assume agora ter cometido, nomeadamente quanto ao cuidado que foi posto inicialmente, por decisão do próprio grupo de investigadores, em tudo o que dizia respeito a Kate e a Gerry McCann. Por medo da reacção da opinião pública. Hoje, não concordaria com decisões que ajudou o grupo de investigadores a tomar. No livro "Maddie A Verdade da Mentira" não diz tudo o que sabe. Um segundo livro não está fora de questão.

Jornal de Notícias | Quem pressionou a Polícia Judiciária (PJ) para que não avançasse com diligências?


Gonçalo Amaral |As pressões sentiram-se logo na manhã a seguir ao desaparecimento da menina. O cônsul britânico no Algarve foi à Polícia Judiciária para se inteirar da investigação, o que não é anormal. Logo depois, foi a vez do embaixador que ali se deslocou. Não é um procedimento normal com todos os súbditos ingleses. Pelo menos, nunca tinha assistido a uma situação semelhante.

Mas foi impedido de avançar com diligências que tinham sido planeadas?

A mim ninguém me disse "não faz". Se isso acontecesse estava o caldo entornado. Terminava ali a minha participação naquela investigação. Mas nós sentimo-nos constrangidos.

De que forma?

Repare. Logo após a visita do embaixador, sai um comunicado a referir a tese de rapto.

Foi o embaixador quem pressionou a PJ?

Não foi isso que eu disse. A pressão sentia-se na equipa de investigadores. Quando, no seio do grupo, se discutia a realização de uma determinada diligência havia sempre alguém que dizia "ai, ai que temos de ter cuidado".

Quem?

Não vou referir nomes. Se eu no livro tenho o cuidado de nunca referir nomes, também não o vou fazer agora. É das tais coisas que ficam guardadas. Mas do grupo chegaram a fazer parte sete, oito, dez pessoas, entre coordenadores, directores… Quando se levantava a questão da necessidade de fazer uma determinada diligência, tudo era discutido, designadamente, qual a importância, o objectivo que se pretende atingir e quais as consequências. E quando eram questões em que havia necessidade de nos aproximarmos mais do casal e do grupo de amigos tinha-se o cuidado de não serem considerados suspeitos logo naquela altura, para não serem acusados na praça pública, face a esta pressão mediática que existia

Está a dizer que foi a própria PJ a decidir protegê-los. Porquê tantos cuidados? É normal haver suspeitos numa investigação criminal.

Porque naquela altura seríamos logo crucificados na praça pública.

Tiveram medo da pressão mediática…

Não. Sentíamos que era preciso tratá-los com pinças. Reconheço que errámos.

Se acreditava na tese da morte acidental e no envolvimento dos pais porque razão não insistiu para que determinadas diligências fossem feitas?

Na altura em que foram sugeridas, os argumentos contra foram considerados válidos por todo o grupo. Era o próprio grupo que dizia "não vamos por aí".

Se não concordava porque é que não bateu a porta? Era a sua imagem, enquanto coordenador, que estava em causa.

Não era altura para rebeldias. Eu sempre trabalhei em grupo. Se os argumentos eram válidos, havia que respeitá-los.

Mesmo sem concordar com eles?

Na altura concordei porque os considerei válidos. Se calhar agora, à distância, não concordo.

O que ficou por fazer?

Demasiado. A primeira versão da carta rogatória e que foi alterada após o meu afastamento, a 2 de Outubro, tinha várias diligências que simplesmente foram riscadas. Era pedido que os cães ingleses fizessem buscas à casa dos McCann em Leicester e às dos amigos e que cheirassem as suas roupas. Também se pedia para verificar a existência de um quadro no frigorífico dos pais da menina, onde escreveram que tinha problemas em dormir e se levantava várias vezes à noite. O quadro é referido por um polícia inglês. Os novos interrogatórios aos arguidos que propusemos também não foram feitos. A carta foi alterada pelo Ministério Público.

Com que objectivo?

Provavelmente as diligências não foram consideradas importantes depois do meu afastamento.

Disse que com um outro Ministério Público talvez o desfecho da investigação teria sido outro. Com outro Director Nacional, que não Alípio Ribeiro, recentemente criticado por Almeida Rodrigues, a investigação teria sido conduzida de outra forma?

Não sei, mas provavelmente não. A Direcção Nacional é só uma e tem um entendimento e procedimentos muito próprios, independentemente de quem a dirige.

Quem escolheu o laboratório de Birmingham para analisar os vestígios?

A PJ decidiu que os vestígios tinham de ser analisados por um laboratório inglês. Dada a campanha que já existia na altura contra a PJ. Nessa altura, já tínhamos a perfeita consciência de que fossem analisados em Portugal e fossem positivos iria existir uma forte reacção contra a competência e a capacidade dos nossos laboratórios. Fizemo-lo para mostrar confiança nos laboratórios ingleses. A escolha de Birmingham foi da Polícia inglesa.

Foi uma estratégia? Ou tinha receio de que as amostras não tivessem sido bem recolhidas e que tivessem sido contaminadas?

Foi estratégia. Tínhamos confiança na força dos vestígios e na competência dos nossos técnicos. Foi tudo recolhido com o máximo de cuidado. No momento da recolha, os técnicos portugueses tiveram o cuidado de contactar os técnicos ingleses e seguiram as indicações dadas por eles ao telefone. Designadamente os vestígios recolhidos no mosaico da sala por forma a que nada falhasse na questão da prova, desde a recolha ao manuseamento e ao acondicionamento.

Mas os procedimentos não são universais? Ou queriam salvaguardar a vossa posição em caso de falha?

São universais. Mas quisemos seguir à risca os procedimentos da polícia inglesa porque os vestígios iam ser enviados para um laboratório inglês.

Não confiava nos técnicos portugueses?

Tinha e ainda tenho absoluta confiança. Mas queríamos que alguém da polícia inglesa também concordasse com o que estavam a fazer para que, mais tarde, ninguém pudesse vir dizer que os vestígios foram mal recolhidos.

Foi uma espécie de defesa antes do ataque?

Mais ou menos isso.

A linha que defende é a da morte acidental no apartamento com envolvimento dos pais. Mas no livro levanta suspeitas quanto a David Payne. Parece uma contradição.

Ninguém pode dizer que as duas não têm relação enquanto não forem investigadas. Não levanto suspeitas sobre esse senhor nem contra ninguém. Apenas dou conta de que há situações que ficaram por esclarecer. Há um depoimento de um casal de médicos ingleses que dizem que em Setembro de 2005 quando passavam férias com os McCann em Maiorca e outros casais, se aperceberam de comportamentos que para eles não são normais e que se referiam a esse senhor. O casal deslocou-se à polícia inglesa assim que viu essa pessoa na televisão e que esse depoimento só chegou a Portugal no dia 26 de Outubro. A senhora diz que viu Payne de dedo na boca, num movimento de entrar e sair, e a esfregar o mamilo com a outra mão. E estaria a falar de Madeleine ao lado do pai, Gerry. Esses depoimentos de médicos, tão credíveis quanto os McCann, deviam ter tido outro tratamento por parte da polícia.

E o que fez a PJ quando finalmente recebeu essa informação?

Nada. Nem sequer incluiu na carta rogatória qualquer diligência relacionada com este episódio.

David Payne, na sua opinião, pode ter alguma coisa a ver com o desaparecimento de Madeleine?

Não sei porque não foi devidamente investigado como deveria, em meu entender, ter sido. Terá sido o último a ver Madeleine com vida depois das 17.30 horas, quando ela sai do infantário. Encontra Gerry a jogar ténis e pergunta-lhe por Kate e pelos miúdos. Gerry responde que estão no apartamento e ele vai lá. Regressa 30 minutos depois. Kate diz que foram 30 segundos. Algo que não bate certo.

No livro diz que ele foi reconhecido por uma assistente social. O que pretendia ao relatar esse episódio?

Apenas que as pessoas percebam que é mais uma situação que não foi investigada. Na manhã seguinte ao desaparecimento, uma assistente social de nacionalidade inglesa de férias no Algarve oferece-se para ajudar, mas foi quase escorraçada pelo casal, ao que parece por indicação desse senhor [David Payne]. Esse senhor é reconhecido pela assistente social como já lhe tendo passado num processo, numa investigação, não sabendo ela na altura referir se como testemunha ou como noutra figura qualquer. Se tem ou não alguma relação com a morte, não sei. Mas são situações que não podiam ter passado em claro, como foram. Tinham de ter sido averiguadas.

Como é que Robert Murat passa de tradutor a arguido?

Havia muitas dificuldades em encontrar tradutores. Precisávamos de muitos porque era preciso ouvir muita gente. Foi a GNR a sugerir o nome de Robert Murat porque falava fluentemente português e inglês. Era conhecido dos militares por ter ajudado informalmente nalgumas traduções. Passa a arguido por um conjunto de factores conjugados. Há um depoimento de Jane Taner que o reconhece quando o vê de costas e garante que é o homem que viu naquela noite com uma criança ao colo.

Mas Jane Taner era uma testemunha credível?

Nunca foi. Mas havia outras coisas. Telefonemas anónimos de pessoas que chegam a referi-lo como possível raptor.

Esses telefonemas anónimos aconteceram antes ou depois de a Jane Taner o ter reconhecido?

Não sei precisar, mas foi seguramente antes de ter sido constituído arguido. Seja como for, nada foi encontrado que relacione Robert Murat a este caso.

Recentemente disse que há muita coisa que sabe e que não escreveu. Há alguma coisa que tenha deixado de fora propositadamente?

É lógico que sim.

O que e com que finalidade?

Não o posso revelar.

Deixa para um segundo livro, por exemplo?

Talvez. Vamos ver.

in "Jornal de Notícias"

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